segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Relações permeadas de afeto


A cada dia que passa, as relações familiares se tornam mais enfraquecidas. Isso se deve a uma série de fatores, dentre eles o de que as pessoas a cada dia trabalham mais e ficam menos em casa, tendo pouco ou nenhum tempo livre para se dedicarem aos outros. Além disso, as relações interpessoais ficam progressivamente mais complicadas e, em contra-ponto, as pessoas têm menos paciência (e vontade, por quê não?!) de lidar com os conflitos alheios.
No meio dessa crise institucional da família, surge uma questão interessante: os laços sanguíneos de parentesco não são mais um fator garantidor de uma convivência familiar plena e duradoura. O sangue, por sinal, vem aos poucos deixando de ser determinante para a formação do que até então se conhecia como família, no seu conceito ortodoxo de "célula-mãe da sociedade", e que hoje passa a ser chamada de "entidade familiar", estrutura baseada em relações de reciprocidade e de afeto.
O afeto, na esfera jurídica, vem sendo um instrumento muito importante no preenchimento de lacunas legais e no suprimento de dispositivos ultrapassados e afastados da realidade sócio-político-econômica. Como tal, a sua utilização como princípio muitas vezes solucionador de conflitos vem dando novos contornos à família, em especial à família brasileira. A paternidade sócio-afetiva é um bom exemplo da importância do afeto nas relações familiares modernas: trata-se de um conceito jurídico que se destina ao estabelecimento da paternidade com base em outros elementos que não a carga genética, tais como a convivência e a afetividade existente entre pai e filho. Atualmente, inclusive, existem inúmeras decisões arquivadas nos Tribunais reconhecendo que a paternidade sócio-afetiva, em muitos casos, tem igual ou maior força do que a paternidade biológica, pela conclusão de que o status de pai ultrapassa o conceito da concepção biológica, traduzindo-se na conduta de amar e cuidar de uma criança.
Vale lembrar, ainda, que na nova concepção de família, ou ainda de entidade familiar, consagrada pela Constituição Federal promulgada em 1988, a base da sociedade passou a ser o indivíduo e deixou de ser a família pura e simples, encarada como um fim em si mesmo, independentemente da vontade afetiva de seus membros. Para a nova Carta de Direitos, a família passou a ser um meio, um instrumento de realização do ser humano em toda a sua plenitude.
Não obstante a tão exaltada crise do instituto "família", e embora a sociedade viva um período extremamente individualista, que aclama a busca da auto-realização, pessoal e profissional, não se pode perder de vista que o núcleo familiar ainda é tido como um refúgio para o anonimato da realidade das ruas, sendo nela que o indivíduo encontra a sua identidade cultural e moral.
O que vem se modificando, sim, é a estrutura do que até hoje conhecíamos como família: aquela bolha tradicional formada por um chefe (o pai), a mãe (submissa e inexpressiva) e os filhos, todos eles convivendo plena e forçosamente. A família, hoje, possui várias caras: é a família da mãe solteira e do filho ou da filha (ou ainda dos filhos); a do casal que opta por não ter filhos e aproveitar os prazeres que a vida só proporciona a quem não tem responsabilidade sobre outrém; a do viúvo que cria os filhos depois que a esposa falece; a do casal que se encontra, depois de respectivos divórcios, e passa a criar seus filhos em conjunto; a dos colegas de universidade que se deslocam do interior para a capital, onde passam a dividir o mesmo teto, as obrigações, as aflições e, quiçá, o afeto familiar.
Pensando em escrever sobre esse tema, e já ficando envergonhada de ter lançado o blog no espaço virtual e tê-lo deixado latente, lembrei que seria interessante recomendar um filme que já assisti por mais de uma vez, cujo conteúdo vem bem a calhar com a crise da família e com os novos contornos das relações familiares, traçados por uma época de modernidade, individualismo e conflitos de identidade, caráter, ética, moral ou o que mais couber.
O filme é o ganhador de 2 Oscar, um deles por melhor roteiro original, "Little Miss Sunshine": uma tragicomédia americana com pitada de drama, dirigida por Jonathan Dayton e Valerie Faris, lançada em 2006, que conta a história de uma família que percorre o caminho do Novo México até a Califórnia em uma Kombi amarela, para levar a filha caçula a um concurso de beleza: "A Pequena Miss Sunshine". Em meio a uma realidade familiar pouco estável, com cada membro da família com suas peculiares diferenças e problemas, vem a notícia de que Olive foi classificada no concurso "A Pequena Miss Sunshine", na Califórnia. Para acompanhar a menina, toda a família (que não possui nem casa nem carro próprios) decide cruzar o país numa Kombi. Dentre eles, o avô de Olive, que ensaia todos os dias a neta para o concurso e que foi expulso de uma casa de repouso pelo uso de drogas; o pai da família, Richard, cidadão de classe média americano, que vende um programa de auto-ajuda para quem quer ser um vencedor; a mãe de Olive, típica figura materna, que valoriza a honestidade acima de tudo; Frank, o tio gay que acaba de tentar suicídio por ser traído pelo namorado, e por isso vai passar uns tempos com a família; e o irmão mais velho de Olive, Dwayne, aficcionado em ser piloto de aviões, "emo" e que faz um voto de silêncio por motivos desconhecidos. Todos juntos, partem para levar a pequena e desengonçada Olive para realizar o seu sonho: participar do concurso de beleza. Pelo caminho, claro, encontram uma série de dificuldades e passam por momentos de alegria, tristezas e descobertas.
O filme conta uma história simples, mas com uma delicadeza especial e particular, que destaca a dificuldade e as diferenças nas relações familiares, e acima de tudo ensina que o mundo (e o núcleo familiar) não é (ou ao menos não deve ser) uma competição e que a sociedade não deve ser dividida entre vencedores e perdedores. Fica a introdução ao tema e a dica cinematográfica, enquanto uma análise mais aprofundada sobre a crise do instituto "família" e o afeto nas relações familiares modernas vai sendo rabiscada.
*Para assistir ao trailer de "Little Miss Sunshine", acesse: http://www.youtube.com/watch?v=VWyH_twcMl0&feature=related

Um comentário:

  1. A crise sempre existiu, sempre vai existir. Apenas o que muda é a forma como encaramos. Seja negativa, essencial, necessária ou desnecessária.
    Crise para uns, convivência mister para outros.
    Keep thinking...

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