segunda-feira, 20 de julho de 2009

O lar que não chegou

Por Maria Berenice Dias, advogada (OAB-RS nº 74.024) e ex desembargadora do TJRS.
Recebida com euforia, a chamada Lei da Adoção, que busca reduzir o tempo de crianças e adolescentes institucionalizados, está cheia de propósitos, mas poucos são os avanços e quase nulas as chances de se esvaziarem os abrigos onde se encontram depositados 80 mil seres humanos à espera de um lar.
O projeto de lei, que aguarda sanção presidencial, confessa, no seu primeiro dispositivo, que a intervenção do Estado é prioritariamente voltada à orientação, apoio, promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer. Somente em caso de absoluta impossibilidade, reconhecida por decisão judicial fundamentada, serão colocadas sob adoção, tutela ou guarda.
Ainda que nem se questione que o ideal é crianças e adolescentes crescerem junto a quem lhes trouxe ao mundo, há uma realidade que precisa ser arrostada sem medo. Quando isso se revela impossível ou é desaconselhável, melhor atende ao interesse de quem a família não deseja ou não tem condições de tê-los consigo é, com a maior brevidade possível, entregá-los a quem sonha reconhecê-los como seus filhos. A brevidade deste processo é o que melhor atende ao interesse de quem tem o direito à convivência familiar preservado constitucionalmente com absoluta prioridade (CF 227).
Para esse fim – e infelizmente – não se presta a nova legislação que nada mais fez do que burocratizar e emperrar o direito à adoção de quem teve a desdita de não ser acolhido no seio de sua família natural. Aliás, a lei traz um novo conceito, o de família extensa ou ampliada (25 parágrafo único): é a que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. E é ela que tem a preferência, devendo ser incluída em programa de orientação e auxílio (19 § 3º).
Talvez o primeiro percalço esteja em impor à gestante ou à mãe que deseje entregar filhos à adoção a necessidade de ser encaminhada à Justiça (13 parágrafo único). O consentimento para a adoção precisa ser precedido de esclarecimento prestado por equipe interprofissional, em especial, sobre a irrevogabilidade da medida (166 § 2º). O consentimento precisa ser colhido em audiência pelo juiz, com a presença do Minsitério Público, e isso depois de esgotados os esforços para a manutenção do filho junto à família natural ou extensa (166 § 3º). Ainda assim, até a data da publicação da sentença de adoção, o consentimento é retratável (166 § 5º) e não pode ser prestado por escrito (166 § 4º) e nem antes do nascimento da criança (166 § 6º).
Mas há outros entraves. Não é mais possível a dispensa do estágio de convivência, a não ser que o adotando esteja sob a tutela ou guarda legal do adotante (46 § 1º). Nem a guarda de fato autoriza a dispensa (46 § 2º), sendo que o estágio precisa ser acompanhado por equipe interprofissional, preferencialmente com apoio de técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência familiar, os quais deverão apresentar relatório minucioso (46 § 4º).
Além disso, a habilitação à adoção transformou-se em um processo (197-A), inclusive com petição inicial acompanhada de uma série de documentos, entre eles: comprovante de renda e de domicílio; atestado de sanidade física e mental; certidão de antecedentes criminais; e negativa de distribuição cível.
O Ministério Público pode requerer a designação de audiência para a ouvida dos postulantes e de testemunhas (197-B II). Com todas essas cautelas se afigura uma demasia condicionar a inscrição dos candidatos a um período de preparação psicossocial e jurídica (50 § 3º), mediante a frequência obrigatória a programa de preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos (197 § 1º).
Aliás, a título de disposições transitórias, é imposta a todos os figurantes no cadastro, no prazo máximo de um ano, a obrigação de sujeitarem-se à preparação psicossocial e jurídica, sob pena de cassação da inscrição (6º). Pelo jeito, a partir da entrada em vigor da nova lei, nenhuma adoção poderá ser deferida enquanto não se submeterem as pessoas já habilitadas ao indigitado procedimento preparatório. E, caso não seja disponibilizado dito programa pela justiça, no prazo legal, simplesmente todas as inscrições estarão automaticamente canceladas.
Mas há uma exigência que se afigura particularmente perversa. Incentivar, de forma obrigatória, o contato dos candidatos com crianças que se encontram institucionalizadas e em condições de serem adotados (50 § 4º). Além de expor as crianças à visitação, pode gerar nelas e em quem as quer adotar, falsas expectativas. Afinal, a visita é tão-só para candidatar-se à adoção, sendo que depois da habilitação terá que ser cadastrado em uma lista a ser obedecida quase que cegamente (197-E § 1º).
Aliás, uma das exceções à ordem de inscrição é no mínimo curiosa: quando o adotante detém a guarda legal de quem tem mais de três anos de idade (50 § 13 III).
Bem, falando em habilitação perdeu o legislador a bela chance de explicitamente admitir – como já vem fazendo a jurisprudência – a adoção homoparental. Nada, absolutamente nada justifica a omissão. Para conceder a adoção conjunta, de modo pouco técnico, fala a lei em “casados civilmente” (42 § 2º).
Também é confrontado o preceito constitucional ao ser exigida a comprovação documental da união estável (197-A III). De qualquer modo, tais dispositivos não vão impedir que as famílias homoafetivas continuem constituindo família com filhos por meio da adoção.
Diante de todos esses tropeços, de nada, ou de muito pouco adianta impor aos dirigentes das entidades que desenvolvem programas de acolhimento familiar ou institucional que, a cada seis meses, encaminhem a juízo relatório (92 §2º), elaborado por equipe interprofissional ou interdisciplinar, para a reavaliação judicial das crianças e adolescentes em programas de acolhimento (19 § 1º).
Também sem chance de se tornar efetiva a limitação da permanência institucional em dois anos (19 § 2º). Às claras que não haverá como o juiz fundamentar que atende ao interesse da criança a necessidade de permanecer institucionalizada por prazo superior. A justificativa só será uma: não há onde colocá-los.
Do mesmo modo, garantir a tramitação prioritária dos processos, sob pena de responsabilidade (152 parágrafo único), mas não prever qualquer sanção outra, resta sem efeito prático impor a conclusão das ações de suspensão e perda do poder familiar no prazo máximo de 120 dias (163) e assegurar prioridade absoluta no julgamento dos recursos, que deve ocorrer no prazo de 60 dias (199-D), dispensada a revisão (199-C) e admitido parecer oral do Minsitério Público (199-D parágrafo único).
A adoção internacional, de fato, carecia de regulamentação. Mas foi tão exaustivamente disciplinada, impondo-se tantos entraves e exigências que, dificilmente, conseguirá alguém obtê-la. Até porque, o laudo de habilitação tem validade de, no máximo, um ano (52 VII). E, como só se dará a adoção internacional depois de esgotadas todas as possibilidades de colocação em família substituta brasileira e após consulta aos cadastros nacionais (51 II), havendo a preferência é de brasileiros residentes no exterior (51 § 2º), melhor seria, simplesmente, vetar a adoção internacional.
Claro que a lei tem méritos. Assegurar ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica e acesso ao processo de adoção (48), é um deles. Aliás, tal já vinha sendo assegurado judicialmente. A manutenção de cadastros estaduais e nacional tanto de adotantes como de crianças aptas à adoção (50 5º) – o que já havia sido determinada pelo Conselho Nacional da Justiça (Res. 54/08) – é outro mecanismo que visa agilizar a adoção. Inclusive a inscrição nos cadastros deve ocorrer em 48 horas (50 § 8º), cabendo ao Ministério Público fiscalizá-los (50 § 12). Também é salutar assegurar preferência ao acolhimento familiar do que ao institucional (34 § 1º), bem como garantir aos pais o direito de visitas e a mantença do dever de prestar alimentos aos filhos quando colocados sob a guarda de terceiros (33 § 4º).
O fato é que a adoção transformou-se em medida excepcional, a qual deve se recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança e do adolescente na família natural ou extensa (39 § 1º).
Assim, a chamada lei da adoção, procura, por todos os lados é impedi-la, tanto que, onze vezes é feita referência à prioridade da família natural. Assim, para milhares de crianças e adolescentes que não têm um lar, continuará sendo apenas um sonho o direito assegurado constitucionalmente à convivência familiar.
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Fonte: www.espacovital.com.br

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