sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Vertigem


* Por Aline Kopplin
Ao entrar pela porta do bar, passando pelo luminoso que brilhava azul-vermelho-azul-vermelho, respirou fundo e engoliu o choro. Passara a noite perambulando pela cidade. Tinha um buraco no peito e a garganta seca.
Lembrou daquele escritor que morreu cedo, que dizia que as pessoas são abismos, e que chegar perto dá vertigem. Parou, com raiva de si mesma. Na merda, e ainda filosofando. Maldita cabeça que pensava em círculos, sem sossego.
Atravessou o salão, sentou-se no bar e pediu uma dose de vodka. Vestia uma camiseta dele que tinha encolhido, jaqueta de couro preta, calça justa e botas de cano curto. Trazia uma bolsa grande cor-de-laranja a tiracolo e uma sacola cheia de revistas, que carregava com força desde o fim da tarde, quando saíra do trabalho, tomara um táxi e fora direto para o apartamento dele, no prédio velho da rua calma daquele bairro cheio de árvores, onde tantas vezes eles passearam de mãos dadas.
A unha, pintada de preto, havia levemente descascado. Há horas não retocava o rímel, borrado e que lhe dava ares de abatida. Bebeu de um tiro só. Pediu outra. Conferiu na carteira quanto ainda lhe restava. Pouco, mas suficiente pra pagar o táxi até lugar nenhum.
Pensou no desencontro que era sua vida, cheia de indefinições. Lembrou dele. Dele, e do que sentiu quando o conheceu. Da ternura que sentia todos os dias de manhã, quando acordava e via ele ali, do lado, espreguiçando-se com cara de sono. Das tantas promessas que fizeram. Das noites mal dormidas, das brigas interrompidas por loucas reconciliações, da sensação de calor que lhe dava toda vez que ouvia a voz dele no telefone. Pensou nele, por longo tempo. Nele... e nela. Ela, a estranha que roubara sua alma. Não segurou o soluço. Estancou o choro com mais uma dose.
Olhou em torno e viu que, àquela altura, restavam poucas pessoas no bar... uma turma barulhenta no canto, jogando sinuca e bebendo cerveja barata... um casal sentado perto da saída - ela aparentemente muito mais velha que ele... e meia de dúzia de bêbados de gravata contando piadas, tomando uísque e cantando a garçonete, que já limpava as mesas e levantava as cadeiras. Sentiu uma leve tontura e alguma náusea. Já passava das quatro da manhã e ainda não havia comido nada, reflexo do enjoo que lhe invadiu quando, ao chegar mais cedo do que o previsto, girou a chave, abriu a porta do apartamento e deu de cara com um par de sapatos de salto, com a carteira dele caída ao lado.
Levantou e caminhou até o banheiro, lavou o rosto e molhou o pescoço, grudando sem querer uma mecha de cabelo na testa. Tinha a pele mais pálida do que o normal; os olhos caídos; a boca rachada de febre, de raiva, de ciúmes. Lembrou da mãe, que nem devia ter notado a sua ausência, já que era na casa dele que passava a maior parte do tempo.
Não se reconhecia no espelho. Havia perdido o ar malicioso de menina, o jeito de mulher segura. Via apenas melancolia. Sentiu nojo de si mesma, por não ter tomado nenhuma atitude, por ter sido tão fraca ao ponto de apenas sair correndo e chorando, cuidando pra não bater a porta e, assim, não ser descoberta, achando que, se não fosse vista, diminuiría o seu sofrimento. Não poderia nunca conviver com essa atitude, não condizia com seu modo de ser.
Remoendo a cena e pensando fixamente naqueles sapatos de salto, foi sendo tomada por uma sensação alucinante de raiva, que lhe arrepiou os pelos e lhe fez, num rompante, tomar a bolsa e sair batendo a porta, deixando pra trás a sacola de revistas. Pagou a conta direto no caixa e não quis saber das moedas do troco. Passou correndo pelo luminoso, chegou à beira da calçada e parou o primeiro táxi. Rumou em direção ao apartamento dele. Pelo retrovisor, o taxista lhe dava algumas olhadas curiosas, como quem se diverte com o espetáculo da dor alheia.
Dobrando a esquina do seu destino final, sentiu a náusea aumentar. Já não chorava mais, só sentia raiva, dele e de si mesma. E daqueles sapatos. Daqueles malditos sapatos pretos, lindos e aparentemente caros. Desceu em frente ao prédio. Pensou em todos os desaforos que diria. Tocou o interfone. Uma... duas... três vezes. Alguém atendeu. Era ele.
Ao ouvi-lo, seu peito parou. Tentou falar, mas a voz não saiu. Quis gritar, xingá-lo, mandá-lo longe, fazer chantagem emocional, implorar que ele se arrependesse. Quis que ele pedisse pra ela entrar, lhe pegasse no colo, passasse a mão no seu cabelo, lhe desse banho e fizesse amor devagarinho, embaixo das cobertas, dizendo que não tinha tido a menor importância, e que tudo ia passar, e que amanhã era sábado e que eles iam acordar juntos, escovar os dentes, sair pra rua e tomar café na padaria na esquina. Mas calou. Apenas calou. Uma lágrima solitária lhe escorreu pelo rosto, borrando o resto do rímel. Ajeitou a bolsa no ombro, puxou a camiseta curta, tossiu baixinho e desceu as escadas. Saiu caminhando pela rua. Pensou em sumir, desaparecer, parecia mais fácil.
Sabia, porém, que não resolveria nada assim. Que pra sumir, precisava ter grana, o que não tinha. Que precisaria deixar sua família pra trás, o que não conseguia. Que se sumisse, ele nunca mais ia saber dela, e quem sabe nunca iria se arrepender e voltar atrás rastejando e pedir desculpas e dizer que a dona do sapato nada mais era do que uma aventura pueril, e que ele nem gostava tanto assim de salto alto. Pensou nisso e em todas as hipóteses possíveis pra diminuir a dor. Não achou nenhuma solução imediata. Assim, tomou outro táxi e pediu que lhe deixasse em casa. Pagou com os trocados que restavam.
Ao chegar, deitou de roupa e após alguns minutos de choro convulsivo, adormeceu, aumentando a estatística mundial de corações partidos.

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